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Data Magna: "No Ceará não se embarcam mais escravos!"

Política, História e realidade dos 139 anos de uma quimera.

Por Rafael Rocha em 26/03/2023 às 20:25:26

Um dos principais protagonistas do movimento abolicionista nacional é o jangadeiro Cearense Chico da Matilde, também conhecido como Dragão do Mar.

Em 1881, quase uma década antes da abolição da escravidão no País, o líder, junto a outros jangadeiros, se recusou a transportar escravos que saíam do Porto de Fortaleza para serem comercializados em outras províncias.

A ação deu origem à Greve dos Jangadeiros, que por alguns dias interrompeu o tráfico de escravos para outras províncias do Brasil e foi visto como um dos catalisadores para a abolição na província que posteriormente receberia o codinome de Terra da luz.

No entanto, para sermos mais precisos é necessário recapitular alguns momentos do contexto histórico nacional.

É de conhecimento público que a colonização portuguesa no Brasil deu-se por meio de uma sociedade agrária, escravocrata e patriarcal e, desde o século XVI, a coisificação do ser humano é uma das bases para o acúmulo de poder e dinheiro por parte das oligarquias.

Em 1888, o trabalho escravo foi abolido como política de Estado e os grilhões de outrora transformaram-se em correntes invisíveis que, persistindo sob outras formas de dominação, representam amarras possivelmente bem mais difíceis de ser quebradas.

O ordenamento jurídico brasileiro passou a reconhecer a condição análoga à de escravo como conduta delituosa, porém os senhores de engenho da contemporaneidade, sempre em busca de maiores lucros para seus empreendimentos, continuam tentando desconstruir o conceito de trabalhoescravo para balizar a política pública com os assuntos particulares da casa-grande.

O Brasil foi construído com base no tráfico de escravos que, após cruzarem o Atlântico amontoados nos porões dos tumbeiros portugueses, foram negociados como objetos valiosos, escassos e necessários para impulsionar a economia na colônia.

Hoje, ainda nos deparamos com a realidade de milhares de pessoas que, transportadas como carga em caminhões ou ônibus em precário estado de conservação, são desumanizadas pelos açoites modernos do capital.

Por meio desse breve artigo e ancorado na literatura histórica, proponho me a analisar a correlação do trabalho escravo colonial e a escravidão contemporânea a partir da inspiração em obras e autores consagrados, tais como, "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, "O povo brasileiro", de Darcy Ribeiro, "Formação Econômica do Brasil", de Celso Furtado", e "A Elite do atraso" de Jessé Souza.

Partindo dessa analise temos a mobilidade , miscibilidade e aclimabilidade características apontadas por Gilberto Freyre como essenciais para o sucesso da colonização brasileira pelos portugueses. Segundo o autor, não se tratou apenas de atravessar oceanos em busca da extração de recursos naturais, mas, a superação de desafios climáticos e de volume humano, por exemplo, para a expansão permanente de um domínio imperial fundamentado no cultivo e povoamento miscigenado de terras tropicais.

Para o escritor pernambucano, os bicontinentais portugueses trouxeram em seu sangue o dualismo de cultura e de raça. Suas caravelas, abastecidas de significativa quantidade de escravos africanos e algumas mudas de cana-de-açúcar, alimentaram o sistema de produção econômica da colônia que se desenvolveu com base na monocultura, associada ao uso da mão de obra escrava nos grandes latifúndios. o escritor retrata, ainda, o surgimento do povo brasileiro no contexto de equilíbrio de antagonismos que se desenvolveram em torno da casa-grande e da senzala, locais de domínio do patriarcado, do patrimonialismo, da subserviência e da violência física.

Hoje não temos os mercadores de escravos de outrora, transportando, expondo e negociando seus exóticos objetos de trabalho com os coronéis protegidos pelo direito de propriedade, mas a complexidade de um jogo desigual de forças que sutilmente escraviza em pleno século XXI.

Semelhantemente às bases descritas por Freyre, o sangue e o suor dos miseráveis escravizados, continuam fornindo os profundos alicerces das grossas paredes da casa-grande contemporânea, sustentando o agronegócio e a produção para a exportação.

As grades e cadeados deram lugar ao isolamento geográfico de fazendas distantes.

A cana de-açúcar colonial foi substituída por outros gêneros agrícolas "tipo exportação" e até as áreas urbanas, especialmente canteiros de obras e confecções de roupas, abrigam as senzalas do mundo contemporâneo do consumo.

Os neoescravos não são a própria mercadoria, mas são submetidos a novas formas de coisificação.

As heranças da escravidão típica aparecem sob novas roupagens e para não ficarmos detidos apenas nos registros históricos e ao mesmo tempo mantendo a necessária ligação aos exemplos do passado, cito aqui a condição local e atual do problema.

O Ceará nesse mês de março celebra e ostenta orgulhosamente o triunfo pelo esforço e bravura de uns poucos homens de consciência e valores libertários de ter tido a primazia de auforiar seus escravos alguns poucos anos antes da fatídica Lei Áurea de 1888.

É fato também, que mesmo com todo esse pioneirismo, infelizmente aqui nas terras alencarinas a escravidão moderna insiste em permanecer enraizada nos costumes e no cotidiano da nossa sociedade.

Exemplo recente disso, tivemos casos como os que repercutiram na mídia local, onde 17 pessoas entre elas duas crianças estavam trabalhando em condições análoga a escravidão em cerâmicas e pedreiras espalhadas por quatro municípios do nosso Estado.

Não menos estarrecedor é o também recente caso do servente de pedreiro, trabalhador da construção civil, resgatado em condições de trabalho degradante em pleno coração da Aldeota, bairro nobre da capital Cearense.

Mesmo reconhecendo que se trata de um problema global e ancestral, pois além de se fazer presente praticamente em todo o mundo é remanescente de tempos pretéritos como já apresentamos aqui, é necessário encontrar soluções.

Por fim, concluo minha linha de pensamento desejando e cobrando mais atenção e menos retórica por parte do poder público que aqui no nosso querido e festejado Estado do Ceará comemora sua Data Magna com merecido entusiasmo, mas que na maioria das vezes esquece de ser resolutivo no que diz respeito a problemática de fato.

Que nossa Ex Primeira Dama do Estado e agora atual secretária de Proteção Social, Onélia Santana, tenha um mínimo de sensibilidade e empenho para ao menos amenizar uma situação tão degradante e corriqueira que nos envergonhar e desmotiva, reduzindo nosso pioneiro 25 de março a apenas mais um simples e comum feriado no calendário local.

Fonte: Rafael Rocha

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